Apresentação

Ideias senão nas coisas

 

petals radiant with transpiercing light  
contending  
 
above  
 
the leaves  
reaching up their modest green  
from the pot’s rim  
 
and there, wholly dark, the pot  
gay with rough moss
  
William Carlos Williams

A pintura de Ana Prata atua no arranjo entre duas concepções de história – uma cultural, feita de um passado povoado por referências incontornáveis, que sempre retornam; outra psicológica, cuja fantasia seria alcançar alguma simplicidade através de um desembotamento dos sentidos, fruto de uma mão primária livre, menos implicada pelo verniz civilizatório. De um lado, a história da arte. Do outro, uma arte sem história. Trata-se não de algo novo, mas de um dos dilemas-chave da arte moderna: o exercício impossível de, a um só tempo, absorver tudo e começar do zero. Exorcizar o passado para recuperar alguma magia, fetiche ou fogo-fátuo. Ou inverter a seta da história para afirmar que somos não o fim da linha, mas o ponto de partida, novamente a criança. 

 

Os casos são inúmeros. Enquanto admirava os desenhos infantis, Picasso repaginava as meninas de Velázquez em mais de cinquenta versões, numa só tentativa de matar e absorver o mestre. A história é invocada, mas desestabilizada como autoridade. A sucessão de rupturas (nova tradição, como diriam Ezra Pound ou Octavio Paz), porém, preserva o artista moderno numa linha de continuidade histórica. Na melhor das hipóteses, o pintor não apenas se insere numa linhagem, como reorganiza toda uma tradição anterior. 

Aqui, porém, não há grandes disputas. A superfície ornamental de Matisse, plena de argumentos decorativos, o espaço colapsado do cubismo, a conciliação de pontos de vista, a natureza-morta planificada, ou o próprio Picasso, que aparece citado numa enorme tela de quase quatro metros, são convocados para afirmar a pintura como campo amoroso, onde se escolhe com quem dançar. Não a ironia, a homenagem ou o furor da crítica, mas uma alegriazinha de quem sabe brincar. Numa pintura de pequeno formato, um touro feroz emerge à superfície através de uma singela silhueta negra, ao ponto de parecer um inofensivo pet. De Lascaux aos touros gravados por Picasso e Goya, passando pela versão de Tarsila do Amaral, Prata reduz o animal às suas partes constituintes, fazendo da pintura uma arte da tauromaquia. O jogo de forças se expressa não a partir do conflito, mas de uma exibição graciosa, na escala de um amuleto. 

 

A história, portanto, tem caráter desdramatizante e serve sobretudo como pretexto. O vocabulário moderno é signo tanto quanto o são uma maçã, um vaso ou uma garrafa. Em seguida, passado o reconhecimento dos códigos, o que a obra busca é a tangibilidade das coisas. A superfície pictórica de Prata é dinâmica e luminosa, de intensidade solar. A pintora abusa do banho de luz que acende os objetos frente à banalidade do mundo material, seja em razão de sua paleta de alto contraste, seja pelo jogo entre áreas opacas e translúcidas. Em alguns casos, há ainda pigmentos perolados que se modificam conforme o ponto de vista. A pintura pulsa e respira, como organismo vivo. 

 

Além disso, apesar do apelo gráfico, seus traços são como gestos fluidos, e tendem a não encerrar as figuras em sua própria forma. Se a História da Arte reconhece na linha “a estrutura básica da ideia”, não é sobre o raciocínio projetivo que falamos aqui, ao contrário. A linha da artista é errante, guarda um resto de intuição expressiva e atesta o "feito a mão", seja pela pincelada, seja pelo pontilhado fino da costura de alguns tecidos que lhe servem de base, e que já trazem consigo alguns pressupostos pictóricos. Suas estampas e formas padronizadas fazem o olho percorrer a superfície de modo dinâmico, realçando os contrastes colorísticos e as relações entre figura e fundo. As coisas se apoiam umas nas outras, mas seu equilíbrio é frágil (repare no vaso azul em Aurora ou na sucessão de objetos em À mesa). Por vezes sequer se apoiam, mas flutuam sem gravidade, desafiando o estado da matéria (é o caso de Luminosa), ou se fundem e sobrepõem, embaralhando a visão e reforçando uma desproporção intencional (Bojo, Verso, Amigo íntimo, entre outros).

 

Mas a despeito dessa irreverência infantil que simplifica e esquematiza as formas segundo suas próprias leis, Prata nos implica em seus objetos, reconhecendo a figuração das coisas na condição de sua frágil e delicada legibilidade. Algumas de suas frutas, embora abstratas, parecem frescas, como se também passíveis de apodrecimento (Plínio, o Velho, contava dos passarinhos que tentavam bicar as frutas pintadas por Zêuxis, mas não precisamos ir muito longe…). Parte disso também se deve a certa obsessão pelo gênero da natureza-morta, responsável por produzir uma atenção demorada sobre os objetos e conferir densidade poética e espiritual às coisas ordinárias. Mas aqui, mais uma vez, não se trata de nenhuma austeridade descritiva. No caso das pequenas pinturas, mais variadas, somos convidados a abandonar a experiência visual às vezes rápida e arrebatadora da grande escala por uma visão mais matizada e medida. A visão aguda substitui a “periférica”, na promessa de que ocorra um envolvimento mais ativo. É com elas que experimentamos um “corpo a corpo”, acompanhados da estranha e sedutora sensação de que estamos diante de singelos segredos sussurrados. “O amor pelo pequeno é uma emoção infantil”, diria Enrique Vila Matas.

 

Nas médias e maiores, a composição tende a se estruturar com o posicionamento de uma figura central sobre um retângulo, garantindo uma moldura adornada nas extremidades. Tal procedimento atribui um caráter de retrato à uma cena que pertence, a princípio, ao léxico da natureza-morta, embaralhando os gêneros e reforçando certa dimensão subjetiva atribuída a esses objetos. Nada disso nos conduz, no entanto, a um drama emocional. Do mesmo modo que maneja a história, Prata modula seus objetos. As delicadezas vão se revelando frente a um amplo espectro de procedimentos, e o contraste de diferentes tratamentos pictóricos faz com que a imagem ressoe através de ritmos temporais oblíquos, próprios de um espaço percorrido pela retina. Riscos à lápis, áreas lisas ou mais rugosas, raspagens, cores que emergem do fundo, óleo pegajoso sobre feltro, etc. Despojada, a pintura não abre mão de exibir seu próprio método, o modo pelo qual se torna o que é, indo e vindo no trânsito entre constituir e desconstituir as formas visíveis. Nesse exercício, algo da banalidade que nos encerra se suspende, mas não em direção à alguma transcendência. Prata nos mantém concentrados no que acontece no espaço entre a mão e o olho, pois não há "ideias senão nas coisas", como diria o poeta que assina a epígrafe deste texto.


Pollyana Quintella

 
Obras
  • Ana Prata Touro, 2024 óleo e acrílica sobre tecido [oil and acrylic on fabric] 18 x 15 x 1.5 cm 7 1/8 x 5 7/8 x 5/8 in
    Ana Prata
    Touro, 2024
    óleo e acrílica sobre tecido
    [oil and acrylic on fabric]
    18 x 15 x 1.5 cm
    7 1/8 x 5 7/8 x 5/8 in