ANA PRATA: Segredo no rádio
Ideias senão nas coisas
A pintura de Ana Prata atua no arranjo entre duas concepções de história – uma cultural, feita de um passado povoado por referências incontornáveis, que sempre retornam; outra psicológica, cuja fantasia seria alcançar alguma simplicidade através de um desembotamento dos sentidos, fruto de uma mão primária livre, menos implicada pelo verniz civilizatório. De um lado, a história da arte. Do outro, uma arte sem história. Trata-se não de algo novo, mas de um dos dilemas-chave da arte moderna: o exercício impossível de, a um só tempo, absorver tudo e começar do zero. Exorcizar o passado para recuperar alguma magia, fetiche ou fogo-fátuo. Ou inverter a seta da história para afirmar que somos não o fim da linha, mas o ponto de partida, novamente a criança.
Os casos são inúmeros. Enquanto admirava os desenhos infantis, Picasso repaginava as meninas de Velázquez em mais de cinquenta versões, numa só tentativa de matar e absorver o mestre. A história é invocada, mas desestabilizada como autoridade. A sucessão de rupturas (nova tradição, como diriam Ezra Pound ou Octavio Paz), porém, preserva o artista moderno numa linha de continuidade histórica. Na melhor das hipóteses, o pintor não apenas se insere numa linhagem, como reorganiza toda uma tradição anterior.
Aqui, porém, não há grandes disputas. A superfície ornamental de Matisse, plena de argumentos decorativos, o espaço colapsado do cubismo, a conciliação de pontos de vista, a natureza-morta planificada, ou o próprio Picasso, que aparece citado numa enorme tela de quase quatro metros, são convocados para afirmar a pintura como campo amoroso, onde se escolhe com quem dançar. Não a ironia, a homenagem ou o furor da crítica, mas uma alegriazinha de quem sabe brincar. Numa pintura de pequeno formato, um touro feroz emerge à superfície através de uma singela silhueta negra, ao ponto de parecer um inofensivo pet. De Lascaux aos touros gravados por Picasso e Goya, passando pela versão de Tarsila do Amaral, Prata reduz o animal às suas partes constituintes, fazendo da pintura uma arte da tauromaquia. O jogo de forças se expressa não a partir do conflito, mas de uma exibição graciosa, na escala de um amuleto.
A história, portanto, tem caráter desdramatizante e serve sobretudo como pretexto. O vocabulário moderno é signo tanto quanto o são uma maçã, um vaso ou uma garrafa. Em seguida, passado o reconhecimento dos códigos, o que a obra busca é a tangibilidade das coisas. A superfície pictórica de Prata é dinâmica e luminosa, de intensidade solar. A pintora abusa do banho de luz que acende os objetos frente à banalidade do mundo material, seja em razão de sua paleta de alto contraste, seja pelo jogo entre áreas opacas e translúcidas. Em alguns casos, há ainda pigmentos perolados que se modificam conforme o ponto de vista. A pintura pulsa e respira, como organismo vivo.
Além disso, apesar do apelo gráfico, seus traços são como gestos fluidos, e tendem a não encerrar as figuras em sua própria forma. Se a História da Arte reconhece na linha “a estrutura básica da ideia”, não é sobre o raciocínio projetivo que falamos aqui, ao contrário. A linha da artista é errante, guarda um resto de intuição expressiva e atesta o "feito a mão", seja pela pincelada, seja pelo pontilhado fino da costura de alguns tecidos que lhe servem de base, e que já trazem consigo alguns pressupostos pictóricos. Suas estampas e formas padronizadas fazem o olho percorrer a superfície de modo dinâmico, realçando os contrastes colorísticos e as relações entre figura e fundo. As coisas se apoiam umas nas outras, mas seu equilíbrio é frágil (repare no vaso azul em Aurora ou na sucessão de objetos em À mesa). Por vezes sequer se apoiam, mas flutuam sem gravidade, desafiando o estado da matéria (é o caso de Luminosa), ou se fundem e sobrepõem, embaralhando a visão e reforçando uma desproporção intencional (Bojo, Verso, Amigo íntimo, entre outros).
Mas a despeito dessa irreverência infantil que simplifica e esquematiza as formas segundo suas próprias leis, Prata nos implica em seus objetos, reconhecendo a figuração das coisas na condição de sua frágil e delicada legibilidade. Algumas de suas frutas, embora abstratas, parecem frescas, como se também passíveis de apodrecimento (Plínio, o Velho, contava dos passarinhos que tentavam bicar as frutas pintadas por Zêuxis, mas não precisamos ir muito longe…). Parte disso também se deve a certa obsessão pelo gênero da natureza-morta, responsável por produzir uma atenção demorada sobre os objetos e conferir densidade poética e espiritual às coisas ordinárias. Mas aqui, mais uma vez, não se trata de nenhuma austeridade descritiva. No caso das pequenas pinturas, mais variadas, somos convidados a abandonar a experiência visual às vezes rápida e arrebatadora da grande escala por uma visão mais matizada e medida. A visão aguda substitui a “periférica”, na promessa de que ocorra um envolvimento mais ativo. É com elas que experimentamos um “corpo a corpo”, acompanhados da estranha e sedutora sensação de que estamos diante de singelos segredos sussurrados. “O amor pelo pequeno é uma emoção infantil”, diria Enrique Vila Matas.
Nas médias e maiores, a composição tende a se estruturar com o posicionamento de uma figura central sobre um retângulo, garantindo uma moldura adornada nas extremidades. Tal procedimento atribui um caráter de retrato à uma cena que pertence, a princípio, ao léxico da natureza-morta, embaralhando os gêneros e reforçando certa dimensão subjetiva atribuída a esses objetos. Nada disso nos conduz, no entanto, a um drama emocional. Do mesmo modo que maneja a história, Prata modula seus objetos. As delicadezas vão se revelando frente a um amplo espectro de procedimentos, e o contraste de diferentes tratamentos pictóricos faz com que a imagem ressoe através de ritmos temporais oblíquos, próprios de um espaço percorrido pela retina. Riscos à lápis, áreas lisas ou mais rugosas, raspagens, cores que emergem do fundo, óleo pegajoso sobre feltro, etc. Despojada, a pintura não abre mão de exibir seu próprio método, o modo pelo qual se torna o que é, indo e vindo no trânsito entre constituir e desconstituir as formas visíveis. Nesse exercício, algo da banalidade que nos encerra se suspende, mas não em direção à alguma transcendência. Prata nos mantém concentrados no que acontece no espaço entre a mão e o olho, pois não há "ideias senão nas coisas", como diria o poeta que assina a epígrafe deste texto.
Pollyana Quintella