Anexo do Salão Azul: Cinthia Marcelle

Apresentação
As condições da experiência fazem parte da experiência.
Jean-Louis Comolli
 
 
 
Aquele lugar parece gigantesco. Enquanto o sol se prepara lentamente para invadir o espaço pelas grandes janelas de vidro, algumas dezenas de pessoas se movimentam apressadas, em lados opostos e paralelos. São diferentes funções laborais, mas é nítida a compreensão de um objetivo comum. Sem muita conversa, ensaiam uma troca – algo comum em suas rotinas de trabalho, não fosse a importância da mudança que se anuncia.  
 
Aos pés de uma imensidão azul e felpuda, a ação depende da colaboração entre diferentes profissionais. Afinal, o processo de substituição de um carpete envolve várias etapas, é necessário eficiência e atenção aos detalhes, escuta para o comportamento do material em suas etapas de repouso e de união ao piso.
 
Mesas e cadeiras são empilhadas em um canto, criando espaço livre para o trabalho. Na sequência, as bordas do carpete antigo começam a ser puxadas, revelando o piso de concreto.  
 
Enquanto alguns trabalhadores arrancam com força e precisão o carpete anterior, outros começam a preparar o novo carpete. Esses processos precisam ser simultâneos. Os vários rolos do carpete novo são desenrolados com primor e cortados de acordo com as dimensões de cada área. O rigor no corte é essencial para garantir que o novo carpete encaixe perfeitamente.
 
Devido a extensão do local, foi necessário organizar planos de trabalho que duraram alguns dias. Mas nada que fosse diferente do processo de costume, já que qualquer mudança carrega o seu tempo próprio. Conforme a troca de carpetes avança, o lugar gradualmente se transforma. O novo carpete adiciona uma sensação de frescor e renova o ambiente, fazendo com que o espaço pareça completamente diferente dos anos anteriores. Uma vez que o carpete está instalado e todas as bordas bem seladas, tudo é finalizado com a máxima limpeza da área e os móveis são devolvidos ao posto original.
 
O lugar é tão grande que cabem as mais importantes decisões do país, entre as deliberações do legislativo e a fiscalização do orçamento federal. Está em Brasília, mas simbolicamente se esparrama para além de seus salões. O movimento que resvala faz o chão azul se alastrar, chegando até uma galeria em São Paulo, para se fixar em outras superfícies. 
 
Aqui, a mesma precisão do corte ganha desvios, a mão firme que segura a ferramenta de incisão calcula a parte pelo todo, engana o padrão de excelência, inventa seu próprio acabamento e sobe pelas paredes.
 
Nesse novo espaço é reproduzida a instalação do carpete colocado no Senado Federal no dia 5 de abril de 2023.  A imagem protagoniza uma narrativa de si e reinventa ao lado da artista Cinthia Marcelle, sua chegada até ali.  
 
A exposição Anexo do Salão Azul tem gradações de um filme documentário, onde o roteiro confabulado é absolutamente submisso ao tempo real. A troca do carpete do Senado – evento de caráter comum, mas que se tornou emblemático em nossa história política contemporânea em decorrência da invasão de 8 de janeiro – se converte em material de pesquisa para a artista e oferece os contornos formais, cromáticos e conceituais dessa exposição. 
 
Rolos de carpete narram, em seus reversos, o enredo investigativo sobre o processo de substituição e descarte do material. Cinthia Marcelle refaz, junto a profissionais de pesquisa de Brasília e São Paulo, o trajeto desse elemento simbólico, tão rico em história. O processo de trabalho para essa exposição contou com uma busca investigativa do carpete, desde a sua saída do Senado, passando pelas instâncias públicas, até chegar na empresa privada encarregada do despejo. Contudo, na intenção de alcançar o rastro da matéria que atesta uma ruptura radical de perspectiva, a obra se revira e almeja a discussão do porvir.
 
Ao rebobinar os fatos políticos que levaram à substituição total do carpete no Senado Federal, nos deparamos com um marcante acontecimento, reflexo da política de governo bolsonarista dos últimos quatro anos. Esse contexto nos ajuda a entender o quanto estamos submersos socialmente às fantasias de poder e às consequências sistêmicas derivadas de posicionamentos extremistas. São as pulsões de morte inerentes à intolerância, discriminação e negação que alimentam um sistema de valores obstinado a fragilizar qualquer instância de liberdade.
 
A saber que discordâncias políticas configuram saúde democrática e que a ilusão de um mundo sem conflitos é característica do privilégio, o que fazer, enquanto sociedade, para garantir a cultura democrática como impulso de sociabilidade? Ou seja, como a diferença pode incitar debate, reflexão e dinamismo em prol dos direitos básicos de cidadania, contrária à aniquilação da vida? 
 
Cinthia Marcelle provoca essas e outras perguntas ao propor um jogo imaginativo que convoca a presença do Senado Federal por meio de seu piso azul. Na galeria Luisa Strina, o carpete é instalado nas exatas medidas da sala expositiva e sua metade cortada em outras muitas metades entre tamanhos máximo e mínimo, dando a sensação de proliferação. O material empresta ao espaço a licença para performar possíveis instâncias deliberativas, que, por meio da inclusão e participação discursiva, possam promover a invenção da democracia, de uma sociedade mais justa, informada e envolvida politicamente.
 
Para completar, o som ao vivo da Rádio Senado ganha a produção de degradês sonoros, para habitar a sala expositiva. Sua presença funciona como um condutor entre tempo-espaço, uma possibilidade de compartilhamento em tempo real da escuta entre esses dois lugares.
 
Não à toa, a artista decide intervir na arquitetura do espaço e convida para o ambiente outros trabalhos de sua autoria. O diálogo entre suas obras já se tornou procedimento familiar em sua prática e funciona como um gesto autorreferencial, um fio condutor mental, material e visual que oferece ao público pistas do pensamento criativo de Marcelle. Obras novas puxam certas perspectivas de obras mais antigas, atuando como um convite para revê-las e, em alguns casos, ressignificá-las. Esse movimento nos faz constantemente passear por sua trajetória artística de forma mais integrada. Seja em sua fisicalidade expositiva ou apenas no campo da menção, a presença desses encontros visa tornar visível as bordas, esculpir relações e dar corpo ao que sustenta sua produção.
 
Pois bem, ao entrarmos na galeria somos recebidos por uma cortina listrada nas cores branca e azul, em dupla face, presa por um suporte metálico com dois trilhos móveis . O tecido tingido industrialmente ganha sua cópia idêntica, refeita manualmente pela técnica de frotagem em bastão de giz para tecido, com as listras nas mesmas cores e dimensões. Aqui, por – sem – sob – sobre – trás (2023), série que a artista chama informalmente de listrismos, assume o índice da negociação. Sua posição na sala é estratégica e relacional, uma barreira permeável que não impede a passagem, mas anuncia a necessidade de acordos e alianças para possibilitar o atravessamento. A obra está em conversa com a parede de tijolos, por conjugarem as mesmas medidas, sobressalta a presença do trecho que dá continuidade à parede original da galeria. Cinthia constrói um remendo na arquitetura para “fazer caber” as medidas exatas do carpete com a composição do ambiente. Um gesto de mudança estrutural inevitável.
 
As possíveis leituras relacionais entre trabalhos ganham ainda mais quando pensamos em obras como Explicação (2006) e Por vias das dúvidas (2020). Ambas mostram desenhos/colagens de muros em fita adesiva sobre fundo de mesma cor. Na primeira obra, está a ordem. Já na segunda, o desmoronamento. A cor é um elemento importante nesses trabalhos, pois além da evidência não-hierárquica entre figura e fundo, suas primeiras edições se concentravam na cor branca, aprofundando a capacidade da incursão do tempo. O amarelado impregnado no branco faz lembrar que a persistência é inteligência para construir recomeços.
 
Assim, pode-se afirmar que a exposição Anexo do Salão Azul é um estudo sobre forma, cor e materialidade. Afinal, são esses os campos de interesse que balizam o processo de Cinthia Marcelle e funcionam como chaves de leitura para adentrar seu conjunto de obras. Se, por um lado, o que a atrai é o elemento carpete por sua matéria crua, a tonalidade do azul e sua repetição no espaço e em contraste com outros campos cromáticos, cálculos de engenharia que compõem obra e arquitetura, a discussão do labor industrializado versus manual, há também o que se pode flexionar a partir da forma. 
 
Dedicando-se à destreza do corte preciso e matemático, Marcelle traz a sensibilidade de uma abordagem que enfatiza a importância de compreender o todo por meio da análise das partes que o compõem. Ou seja, as partes muitas vezes desempenham papéis específicos e interagem de maneira complexa, contribuindo para as propriedades e características do sistema como um todo. Assim, apresenta um olhar filosófico e politizado para entender a complexidade de sistemas e fenômenos. 
 
Cinthia Marcelle narra, de maneira subjetiva, a ficcionalização de um novo país a partir da mudança de governo que se instaura com a missão de restaurar a estabilidade democrática brasileira. Com isso, a presença central na exposição de um elemento partícipe [carpete] que representa a literalidade dessa mudança, faz com que a obra de Marcelle nos ajude em um dos grandes desafios dessa sociedade: o de fomentar uma pedagogia social que nos faça absorver coletivamente o significado do Estado Democrático de Direito. A consciência educacional que encara liberdade e igualdade como direitos fundamentais e que devem ser providos pelo Estado, como atestado na Constituição Brasileira, reivindica o alicerce político para as bases existenciais de todos os seres vivos e do próprio sistema. Em outras palavras, não basta o desejo de restauração se não há solo que o sustente. 
 
Anexo do Salão Azul nos faz lembrar que não existe garantia de permanência. Se hoje experimentamos momentaneamente a euforia de uma transição significativa de governo, se vivenciamos uma maior presença de corpos racializados e pessoas sexo-gênero dissidentes em posições de liderança, se fazemos parte de uma nova configuração social derivada das ações afirmativas, é fundamental ter cravado no corpo que nada está garantido. O autoritarismo, a hierarquização das subjetividades, a perversidade contida na idealização do capital de consumo, a injustiça social, a perda dos direitos conquistados, não são só indícios de um passado recente ou ameaças do porvir, se fazem presentes como lapsos de um ativismo reacionário. 
 
Essa exposição imagina e evoca. Como o carpete azul felpudo que se alastra para fora do Senado, que a cultura democrática seja disseminada em cada território do país, se multiplicando em diferentes proporções, tendo a memória de sua história colada no verso de cada corpo. Que liberdade e igualdade sejam direitos providos em sua concepção plena e com firmes pilares para que qualquer vislumbre de desgaste democrático, quando ameaçados, possam reagir mais rápido e com mais firmeza. Que seja prazeroso pisar, que convide a deitar como gesto de confiança no que virá. Que tenha cor.
 
— Beatriz Lemos 
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