Ilê Sartuzi: Contrato
CONJUROS, ou algumas notas sobre contratos (para ilê sartuzi)¹
Pedro Zylbersztajn
1.
Todo contrato é, em certo sentido, um feitiço: um conjunto de palavras e gestos simbólicos que instaura uma nova realidade. Uma assinatura e um encantamento são do ponto de vista linguístico muito semelhantes, e podem ser classificados como enunciações performativas, ou seja, atos discursivos que não apenas descrevem o mundo, mas o transformam.
(...)
8.
Os contratos, aqui, funcionam como algo entre promessas e partituras. Estabelecem obrigações, mas também insinuam performances. Atribuem gestos e papéis a serem cumpridos por determinados atores no desenrolar de um determinado tempo. A relação entre uma partitura e sua performance - uma sinfonia, por exemplo - guarda uma ambiguidade ontológica: seriam a mesma coisa ou duas entidades totalmente distintas? Talvez algo no meio do caminho? Nesse caso, onde nesse contínuo se encontraria a resposta? A partitura é com frequência entendida como um dispositivo de memória, nada mais que um recurso para que um acontecimento passado possa ser conservado e replicado. Essa visão, porém, ignora o papel disciplinar que a partitura exerce no exercício da performance, estabelecendo, por meio de códigos linguísticos (mais ou menos) rígidos, o que pode ou não ser realizado em um determinado campo. A introdução da pauta musical, por exemplo, transforma qualitativamente a maneira de se compor música de câmara, que passa então a responder a convenções que se dão no papel tanto quanto às demandas estéticas e materiais do próprio ato de tocar. Existem formas inteiras de composição, como o serialismo, que só fazem sentido se compreendidas como consequência de seu sistema de notação. Portanto, assumir que a performance é sempre preponderante em relação à sua partitura é ignorar o efeito ordenador da própria notação. Por outro lado, assumir a superioridade da partitura é submeter o ato performático às prescrições de signos procedimentais, desconsiderando que, para ser actualizada em performance, a partitura precisa ser interpretada, e portanto está sujeita a variações, erros e, mais simplesmente, às realidades físicas do mundo. Assim, nunca devemos confundir ordem com execução, nem pressupor a supremacia de uma sobre a outra.
1. Trecho do texto desenvolvido para a exposição. Clique aqui para a acessar a versão integral.
